SOBRE A PLATAFORMA
O BRASIL É [AUTO]CONSTRUÍDO
Entendemos moradia como lugar da existência de seres humanos, situados no tempo e lugar. Nos territórios populares, identificados por características contrastantes e rupturas significativas em comparação à mancha urbana institucional, estão moradores em risco de violações dos direitos humanos e constitucionais.
A [auto]construção é compreendida como:
(…) provisão de moradia, onde a família, de posse de um lote urbano, obtido no mercado formal ou informal, decide e constrói por conta própria a sua casa, utilizando seus próprios recursos e, em vários casos, mão-de-obra familiar, de amigos ou ainda contratada
Morado Nascimento, 2016, p. 20
Em 2022, apenas 10% da população haviam utilizado serviços de arquitetos no Brasil (CAU, 2022). Portanto, 90% da população decide e constrói sua moradia por conta própria, ou seja, [auto]constrói sua moradia, seja pelo valor de uso ou pelo valor de troca, sem a assessoria de profissional técnico.
O Brasil é um país majoritariamente [auto]construído.
POR QUE INVESTIGAR A [AUTO]CONSTRUÇÃO
a [auto]construção inicia-se com a compra do lote, seja de forma legal ou ilegal, pago geralmente em prestações mensais, seguida da obra que vai se desenvolvendo por meio da obtenção de materiais ao longo do tempo. É bastante comum famílias comprarem lotes conjuntamente e, após a consequente divisão dos mesmos, construírem as casas de forma individualizada. Na medida em que as famílias se sentem seguras em relação à posse da terra, optam pela [auto]construção na contramão do aluguel e da casa subsidiada pelo Estado, afastando-se naturalmente das instâncias financeiras (de qualquer natureza) e suas “armadilhas” de prestações e contração de dívidas. As decisões construtivas e espaciais ampliam-se diante da capacidade dos [auto]construtores observarem e aprenderem o ofício da construção civil com amigos e familiares e da proximidade com os depósitos de materiais de construção. A precariedade dos serviços urbanos e dos equipamentos públicos configura-se, de imediato, em argumento político individual a pressionar órgãos públicos locais pelo acesso ampliado aos seus direitos.
os terrenos são ocupados de forma espontânea, adquiridos ou não por contratos informais de compra/venda, em áreas centrais desprezadas pela cidade capitalista, porém importantes diante da necessidade de os trabalhadores residirem próximos aos seus lugares de trabalho e acessarem a cidade. Ainda que os moradores nem sempre tenham a segurança da posse do terreno, bem como acesso aos serviços urbanos e aos equipamentos públicos, as favelas foram tardiamente reconhecidas como parte do processo histórico – contraditório e negligenciado – de urbanização brasileira. Por um lado, as favelas permanecem como ações [auto]construídas e autônomas, ainda que marcadas pela precariedade às margens da ação do Estado, mas, por outro lado, têm sido continuamente transformadas por processos de urbanização conduzidos pelo Estado. Em Belo Horizonte, as favelas são nomeadas vilas.
iniciam-se a partir da ocupação de terrenos, de forma lenta, conflituosa e, muitas vezes, violenta, ações interpretadas pelas instâncias jurídicas como ilegais; nesse caso, a lógica de acesso ao solo urbano e da prática da [auto] construção é referenciada pela sobrevivência imediata dos moradores, porém imersos no enfrentamento político diário na luta por moradia, sem qualquer garantia da posse da terra urbana. As patologias construtivas são explícitas nas casas, a princípio mínimas e extremamente frágeis, em razão da urgência de se consolidar a ocupação como instrumento político coletivo diante das ineficientes políticas habitacionais. No caso das OCUPAÇÕES URBANAS ORGANIZADAS, as moradias e os espaços comuns, ao longo do tempo, são aprimorados e ampliados por meio do apoio de redes sociais constituídas de operários da construção civil, donos de depósito de materiais de construção, ativistas, voluntários e estudantes e professores de universidades.
se configuram como partes fragmentadas da cidade institucional, com fronteiras físicas, sociais e políticas explícitas, caracterizados por processos formais que definem ruas, moradias, indústrias, comércios, praças, equipamentos e serviços urbanos. A [auto]construção inicia-se de forma similar aos loteamentos periféricos; entretanto, a oferta dos serviços urbanos e equipamentos públicos existe e desencadeia decisões distintas.
Outros aspectos presentes atravessam a [auto]construção, nomeadas Linhas de Análise (VER AQUI) (Morado Nascimento, 2024, p. 126-128):
As etapas do construir e do decidir sobre a moradia se dão no tempo em resposta ao presente e ao futuro. Os [auto]construtores constroem suas casas em tempo curto (até 5 anos), médio (entre 5 a 10 anos) e longo (por mais de 10 anos), alinhados ao tempo de decidir que pode ser assegurado (por decisões estruturadas), transitório (por decisões condicionadas à existência), ou, indeterminado (por decisões imprecisas). O tempo está fortemente atrelado à disponibilização imediata ou não da mão-de-obra, dos materiais construtivos e recursos financeiros, todos ressignificados ao longo do processo. O tempo, então, organiza a moradia [auto]construída de forma mais ou menos orgânica e solidária. Os processos decisórios sobre a moradia são realizados no tempo real dos moradores, e que não é o tempo da arquitetura, do planejamento, do urbanismo, da engenharia ou da ciência.
Fundos financeiros disponíveis do [auto]construtor são elementos estruturantes da sua prática e atravessam todas as outras linhas de análise, ampliando ou reduzindo suas escolhas e conferindo maior ou menor efetividade e solidez na tomada de decisão sobre os materiais, técnicas construtivas e mão de obra. Os recursos financeiros, essencialmente dependentes da renda individual ou familiar, custeiam a moradia por meio de: (i) poupança ou doação, existente antes do início da obra, (ii) parcelamento financeiro, que ocorre ao longo das etapas da obra, e, (iii) empréstimo financeiro posterior à obra gerando, em alguma medida, endividamento. Na [auto]construção, a destinação financeira ocorre simultaneamente com a execução da obra, não existindo, a priori, etapas de projeto e planejamento da moradia.
As técnicas e os materiais construtivos identificados para a estrutura e vedação estão vinculadas à mão de obra: (i) própria ou familiar; (ii) de mutirão de familiares e amigos, ou, (iii) por contratação de operários da construção civil. O maior ou menor domínio das técnicas construtivas, que resulta em eventuais reformas e patologias construtivas, caracterizam diferentes [auto]construtores. Além disso, as técnicas construtivas disponíveis e o modo de funcionamento do canteiro de obras, bem como a autonomia em realizar a obra economicamente e construtivamente, tam-bém determinam práticas diferentes. As técnicas (i) laje em concreto e alvenaria estrutural em blocos de solo-cimento prensados ou (ii) blocos cerâmicos, (iii) laje de vigotas de concreto e lajotas cerâmicas assentadas em vigas e pilares de concreto com vedação em blocos cerâmicos ou (iv) vedação em blocos de concreto, (v) laje, vigas e pilares em concreto com vedação em blocos cerâmicos, (vi) vigas e pilares em concreto, sem laje, com vedação em blocos cerâmicos, e (vii) vigas e pilares em madeira, sem laje, com vedação em tábuas de madeira, não cercam todas as práticas construtivas da [auto]construção brasileira, mas referem-se às práticas construtivas encontradas nos territórios pesquisados.
A possibilidade implícita de construir a moradia a partir da experiência e da vivência sobre decidir e sobre saber-fazer se dá de forma plena (absoluta), compartilhada (com outro) ou restrita (limitada). Contudo, é importante ampliar a questão da autonomia para além das questões espaciais e construtivas e assumi-la perante as necessidades habitacionais dos moradores e as condições políticas, ambientais, culturais, econômicas e técnicas de produção da cidade. Ou seja, as decisões na prática da [auto]construção não são tomadas para alcançar a materialidade física do objeto-casa, mas do processo-morar. Como disse Edgar Morin (2005), é uma autonomia dependente do meio externo, onde respostas emergem da organização própria do morador diante das escolhas que faz sobre sua existência na sociedade.
As práticas dos [auto]construtores se dão no encontro de cada agente e da objetividade de todos, em um processo interativo, dinâmico e concreto, alimentado por visões de mundo e por tomada de decisões. À luz de Bourdieu (2009), entendemos agente como aquele que age e luta dentro de um determinado campo de interesses. Os agentes intervenientes da [auto]construção – Estado, amigos, depó-sitos de materiais de construção, movimentos sociais e arquitetos – são, portanto, aqueles que agem, direta ou indiretamente, para além da mão de obra participante (própria, familiares, amigos, operários da construção civil). O Estado tem papel relevante quando, por omissão ou ausência, não garante aos moradores seus direitos constitucionais, ou quando, ainda que presente, não garante qualidade de vida urbana.
Os agentes intervenientes da [auto]construção – Estado, amigos, depósitos de materiais de construção, movimentos sociais e arquitetos – são, portanto, aqueles que agem, direta ou indiretamente, para além da mão de obra participante (própria, familiares, amigos, operários da construção civil). O Estado tem papel relevante quando, por omissão ou ausência, não garante aos moradores seus direitos constitucionais, ou quando, ainda que presente, não garante qualidade de vida urbana.
Outro agente que merece destaque são os depósitos de materiais de construção que direcionam a venda de determinados produtos e materiais construtivos e estabelece as regras de financiamento ou de contrato de determinados serviços. Os arquitetos são omissos ou ausentes. Ressalto que não incluo, aqui, os arquitetos vinculados à assistência ou assessoria técnica, seja via extensão universitária ou via movimentos sociais.
A cultura designa um conjunto de artefatos (palavras, conceitos, técnicas, regras, linguagens, memórias, etc.) historicamente construídos pelos quais dão sentido, produzem e reproduzem a vida material e simbólica dos moradores em cada lugar (Marteleto, 1995). A cultura é liga ou amálgama que une características de cada linha de análise e produz sempre algo distinto.
As Linhas de Análise desvelam que cada moradia [auto]construída se constitui por aspectos distintos:
A [auto]construção torna-se um termo elástico pois incorpora diversas possibilidades nas cidades, sendo expressões diretas dos processos de tomada de decisão dos moradores.
O QUE A ARQUITETURA APRENDE COM A [AUTO]CONSTRUÇÃO?
Reconhecemos que os moradores têm sido participantes ativos nos processos de decisão sobre suas moradias e, portanto, sobre a cidade. Por isso, a palavra [auto]construção é grafada de forma distinta, reconhecendo-se que a provisão de moradias é legítima devido à decisão dos moradores por construir; [auto] é acessório. Compreendemos ser urgente examinar com profundidade as transformações pelas quais a [auto]construção passou desde os anos 1940, a fim de entender a prática dos [auto]construtores, alterar a nossa própria prática como arquitetos e urbanistas e consequentemente melhor contribuir na construção da qualidade de vida urbana para os moradores pobres do país.
A proposta da Arquitetura-Suporte refere-se a:
(…) processo compartilhado de projeto, construção e uso da moradia. Isso se dá por meio do reposicionamento da participação de arquitetos e urbanistas para uma atuação orientada à proposição de um suporte habitável, seguro e flexível, a partir do qual os moradores possam decidir conforme suas preferências, necessidades e disposições
Meneses, 2023, p. 131
(VER AQUI) MORADO NASCIMENTO, Denise; MENESES, Bianca F.; OLIVEIRA, Ana Beatriz I. de; SANTOS, Davi R. dos; ANDRADE, Thalles A. S. de. Por que estudar a [auto]construção?, em XXI Enanpur.
A PLATAFORMA DE ESTRATÉGIAS
Partimos da pergunta de pesquisa:
Quais as diferenças constituintes das moradias [auto]construídas potencialmente indicativas para a construção de processos compartilhados de comunicação e representação do projeto e da construção da moradia contemporânea?
A partir das conversas com [auto]construtores no campo, entendemos ser possível compreender a prática na medida em que escutamos quem efetivamente enfrenta as condições de produção da moradia, ocupa e vivencia o lugar e toma as decisões sobre a construção da mesma. Elencamos as estratégias de construção das moradias acionadas pelos [auto]construtores, em seguida registradas por imagens e reorganizadas como informações para serem compartilhadas com [auto]construtores, arquitetos, pesquisadores, movimentos sociais, estudantes e agentes públicos.
Resultados do eixo “Arquitetura-Suporte”, integrante da pesquisa “Outra lógica da prática para moradia e cidade: o direito de existir” – Chamada CNPq/MCTI n. 10/2023, coordenada pela Profa. Denise Morado.
* Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (Plataforma Brasil).
