Mais casas, mais especulação

Fonte: Brasil de Fato

Os números relativos ao déficit habitacional no Brasil variam. Depende da pesquisa, do ano realizado e das perguntas que foram feitas. Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em seu Comunicado 118, que trata do planejamento da habitação de interesse social, calcula o déficit em 7,9 milhões de moradias em todo o país, ou seja, o Brasil precisaria de mais 15% de domicílios para conseguir abrigar sua população. Foram esses dados a referência para o Plano Nacional de Habitação.

“Tudo indica que o déficit está abaixo desse valor, devido a mudanças de metodologia do cálculo e também por conta da política habitacional no período”, explica Cleandro Krause, técnico de planejamento e pesquisa, que participou da equipe de elaboração do comunicado. O estudo mais recente da Fundação João Pinheiro, em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades e com o Banco Mundial, mostra que em 2008 a estimativa do déficit era de 5,546 milhões de moradias, 83% dessas na área urbana.

Para medir a necessidade de construção de novas moradias para atender à demanda habitacional – ou seja, para medir o déficit – entram na conta as habitações precárias, a coabitação familiar, o ônus excessivo com aluguel (mais de 30% da renda familiar). Uma das mudanças de metodologia foi incluir a coabitação consentida. Além desses casos de necessidade de novas moradias, há também o cálculo de “inadequação de domicílios”, que mede a carência de serviços urbanos de infraestrutura, como saneamento básico, energia elétrica e outros. É nesse quesito que entram os loteamentos irregulares, favelas e cortiços.

No estudo da Fundação João Pinheiro, um dado permanece praticamente inalterado: o déficit habitacional é concentrado na faixa salarial de até três salários mínimos e 89,6% das famílias sem moradia ganham, no máximo, três salários, ou seja, R$ 1635, de acordo com o mínimo atual.

Os pacotes governamentais para enfrentar essa situação não levam em consideração um dado apontado na pesquisa do Ipea: em valores absolutos, o estoque imobiliário corresponde ao déficit habitacional. Segundo o comunicado, em 2006 foram contabilizados 6,7 milhões de imóveis vazios. “São domicílios fechados, não são para uso eventual, como casa de veraneio ou em reformas.

Mas é importante destacar que não existe uma correspondência de 1 para 1 em cada município do Brasil”, aponta Cleandro. “Nesse momento a política habitacional ainda não consegue tratar em grande escala o uso dos domicílios fechados. O que já produziu algum resultados são os imóveis da União que já foram destinados para uso habitacional”, reforça.

Joviano Mayer, advogado da ocupação Dandara, em Belo Horizonte (MG) e militante das Brigadas Populares, destaca que esses imóveis deveriam ser desapropriados, conforme aponta não só o Estatuto da Cidade, mas a Constituição.

“Os imóveis urbanos devem cumprir sua função social e ao não cumprir devem ser desapropriados. O problema da habitação no Brasil não é um problema de falta de moradia, que requer novos empreendimentos. Se fosse cumprida a lei, a quantidade de imóveis ociosos retidos poderiam suprir o déficit habitacional”.

Minha casa?

O Programa Minha Casa, Minha Vida, lançado em 2009 como “o maior programa habitacional do país”, tinha a meta de construir um milhão de moradias. Em junho deste ano foi lançada versão 2, com a meta de dois milhões de moradias. Em parceria com a Caixa Econômica Federal e empresas privadas, o programa, de acordo com sua versão oficial, “nada mais é do que um conjunto de fi nanciamentos imobiliários destinados às famílias carentes do Brasil”. As famílias são divididas em três grupos: de 0 a três salários, de 3 a 6 e até dez salários mínimos. O programa entregou até agora 438.449 moradias no país e a previsão é entregar o restante do previsto para a primeira fase até o meio do ano que vem. A justificativa para o número abaixo do 1 milhão previsto é o ciclo do empreendimento, que costuma levar até 18 meses.

Mas a crítica principal dos movimentos sociais ao programa não é a demora ou a não realização dos gastos, e sim sua estrutura e prioridades. Maria das Graças Xavier, da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, acredita que o programa é o “melhor” para a aquisição da casa própria, com contrato de compra e venda, mas não consegue chegar ao público principal. “A maior parte do programa é voltada para rendas maiores de 4 salários e nós trabalhamos com a faixa de até 3 salários. Hoje os movimentos vão até uma região, fazem estudo do terreno e, até comprar, a Caixa demora a repassar e a imobiliária vem e compra o terreno antes do movimento, por um valor maior”, explica.

Segundo Maria das Graças, com o lançamento do programa a especulação imobiliária fez com que o custo da terra aumentasse cada vez mais. “O metro quadrado triplicou em São Paulo”, denuncia. “Em São Paulo, o programa não atingiu nem 10% da necessidade de moradias ainda”. Outro problema, de acordo com ela, é a falta de vontade política para garantir a implementação do programa por parte de prefeituras e governos estaduais, principalmente na região Sudeste.

“O programa ao invés de enfrentar a ação perversa da ação imobiliária, a alimenta”, avalia Joviano Mayer, que afirma que em Belo Horizonte nenhuma unidade sequer foi destinada às famílias de até três salários. “Não há um interesse em construir para esse perfil. Nas cidades em que há a construção pelo programa, ela é destinada à faixa mais alta, de até 10 salários. É mais vantajoso para as empresas construir empreendimentos de alto padrão”, pontua.

Outro ponto levantado pelos movimentos é falta de participação social no planejamento do programa. “O Minha Casa, Minha Vida desconsiderou o acúmulo do programa nacional de habitação de interesse social. Assim o governo abriu mão de outros programas que, ainda que com limitações, atendiam às demandas. O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), por exemplo, perdeu muito peso”, destaca Joviano.

Esse elemento também é colocado no comunicado do Ipea, que analisa os demais programas habitacionais e a constituição do FNHIS. “Se a gente olha para o Fundo, vê que os recursos para o Minha Casa, Minha Vida não passam por ele. É claro que o programa não é apenas uma política habitacional, é também um programa de recuperação da economia. Mas seus recursos não estão sujeitos ao controle social que o conselho gestor poderia fazer. O comitê de acompanhamento é formado só pelo governo”, afirma Cleandro. “A questão que a gente coloca é a seguinte: os recursos da União que vão para o Minha Casa, Minha Vida deveriam ser alocados seguindo critérios que os conselhos de habitação e interesse social possam definir. Existe uma expectativa da sociedade que o programa possa ter controle social. Temos instrumentos criados para isso”, explica.

Renda fundiária

A urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura da USP Ermínia Maricato acrescenta: “entrar com recurso financeiro sem fazer a reforma fundiária faz com que aumente a especulação e a renda fundiária”. Ela explica que é impossível eliminar a renda fundiária no capitalismo, mas pode haver formas de atacá-la, ao invés de aumentá- la, como vem sendo feito. “Esse dinheiro que está entrando está indo para a renda da terra e reproduzindo a exclusão. A terra é um negócio, não tem nada a ver com inclusão social, com sustentabilidade, com harmonia no crescimento urbano, com eficiência. Tem a ver com o lucro”, afirma.

Ermínia, que participou da elaboração do Estatuto da Cidade, afirma que ele foi um importante marco institucional, mas não foi implementado. “Na medida em que a sustentação do estatuto deveria ser feita pelas forças sociais que lutaram pela reforma urbana, fundiária, imobiliária, isso não aconteceu. Ao contrário, há cidades em que o preço da terra chegou a dobrar”. Ermínia aponta a contradição: justamente quando a renda da terra no Brasil estava se valorizando, chegando a ser a maior valorização do mundo, o programa Minha Casa, Minha Vida foi lançado.

“Tem gente que acha que valorização imobiliária é progresso. Essas empresas, do mercado privado legal, produzem para menos de 50% do país. O resto o povo faz do jeito que dá pra fazer. É uma questão muito séria essa ignorância sobre o controle do uso e ocupação do solo. Aumentar o preço da terra, retendo imóveis vazios, transformar o mercado de imóveis num ativo financeiro não vai resolver jamais o problema urbano”, avalia.

Segundo Ermínia, o “nó da terra” se complica ainda mais pela influência das forças do capital imobiliário nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional. “A plataforma da valorização imobiliária, a retenção da especulação é municipal, estadual do ponto de vista metropolitano, e nacional”, aponta.

Despejos

Além da demanda direta por moradias, os movimentos sociais chamam atenção para outro problema: os despejos. O Estatuto da Cidade prevê que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes devem fazer seu Plano Diretor, uma lei municipal que realiza as diretrizes do estatuto. O Plano Diretor do Município de São Paulo, por exemplo, foi aprovado em 2002 e coloca a garantia da participação dos moradores nos projetos de urbanização que os afetam diretamente.

Delana Corazza, do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, da PUCSP, afirma que diversas remoções estão acontecendo sem que a população seja devidamente envolvida. “A população é despejada e depois há uma ampla divulgação por parte da Prefeitura sobre os projetos nas áreas onde ocorreram as remoções, no entanto, não se divulga que a população não foi sequer notificada para que participassem do debate sobre os projetos. Há comunidades que viviam em suas casas há mais de 30 anos, foram removidas, estão recebendo auxílio-aluguel e não fazem ideia de como será o futuro, se voltarão ao local, qual a previsão desse retorno”, aponta. “Muitas viviam em casas de alvenaria, famílias de 6, 7 pessoas, com previsão de aumentar as casas para as próximas gerações, e agora, com sorte, irão para os apartamentos subsidiados que não ultrapassam os 50 metros quadrados, sendo que nunca perguntaram para elas se era esse o futuro que tinham previsto ou planejado”, completa.

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